Diana (inédito)

Sol, distraidamente sardenta, encantadora. Começa um zumbido. É uma mosca. Diana enxota-a. Primeiro com um gesto delicado, depois com enfado, por fim arreliada. Atingiu o cúmulo da tolerância. Os esforços de dissuasão cessam. Para a mosca, tanto melhor: escala a garganta, passeia-se pelos lábios e pára junto ao septo do nariz, esfregando as patas dianteiras como se lavasse atarefadamente pratos imaginários. Resistindo à provocação do prurido, Diana não enceta nenhum ataque. A intrusa, no entanto, levanta voo. A mão da rapariga ergue-se à altura da cara, mas o indicador, em vez de friccionar a pele irritada, prefere carregar na narina esquerda, bloqueando-a. Diana assim se fica. Depois de dar umas voltas no ar, a mosca decide revisitar o rosto sardento. Do queixo vai para a maçã-do-rosto, a seguir abriga-se novamente sob o nariz. Inesperadamente, é aspirada com a máxima potência pela narina direita. A jovem sente, deleitada, o insecto a ser sugado pela fossa nasal adentro, a viajar até à faringe e, depois, a subir-lhe à boca que, poderosa, o escarra vingativamente no chão de azulejos. Flecte os joelhos: as patinhas agitam-se impotentemente, debatendo-se no muco guloso e amarelo. Diana retoma a posição erecta, mantendo a inimiga sob mira. Uma ternura sádica tremeluz nos seus olhos. Equilibra todo o corpo sobre o pé esquerdo e fecha o olho do mesmo lado, para fazer pontaria. Num único e decidido movimento, a minúscula sola do salto alto acerta em cheio na mosca.


Um excerto de cada um

dos três contos do livro

 

 

Vermelho, amarelo, azul

 

      Elsa é actriz. Quando tem que preparar um novo papel, senta-se frente ao espelho da cómoda. Fica parada a analisar as diferentes linhas da imagem do seu rosto com a mesma minúcia e absorção com que um recluso, que planeia uma fuga, estuda a planta da prisão. Elsa procura descobrir no seu rosto linhas de possibilidade, passagens secretas, que lhe permitam evadir-se dele. Fá-lo sempre de manhã, após acordar, quando o rosto ainda está cru, vazio, sem ninguém.

      Sem dar sinal de que já despertou, Sérgio contempla-a. A sua nuca inocente… as suas costas luzidias… o vigilante perfil dos seus seios… Um melancólico, opalino desejo de se aproximar dela. De lhe beijar os ombros. De lhe dizer baixinho, ao ouvido, que a ama. Baixinho, muito baixinho – de modo a que o seu coração possa ouvir.

 

 

 

O imprevisto

 

      O suicida romântico entretém-se a escolher a forma de morte para não escolher a própria morte. Para ele, a morte não passa de uma encenação. Os bilhetes de despedida que imagina, ou que chega mesmo a escrever, são bilhetes de entrada para o espectáculo. Na sua mente, a mortalha não se distingue do pano que cai sobre o palco iluminado, em que pontifica o protagonista. Afectado, pesaroso, fantasia sem fim sobre o fim, como se o suicídio fosse uma questão de vida ou de morte…

 

 

 

O barulho das lágrimas

 

      De olhos fechados, os lábios semiabertos de volúpia percorrem a curva de um pescoço feminino. Enlaçando a mulher pela cintura, abre os olhos e encontra o meigo rosto de Isabel recortado sobre o fundo cintilante do rio. Estão os dois. Não há mais ninguém. Ela vira-se de costas, dispondo-se a que ele a dispa. O vestido é atravessado de alto a baixo por uma cordilheira de botões. “Tarefa hercúlea”, graceja ele. Aplica os dedos no primeiro botão: ruboriza. Debate-se com os outros, que ataca ao acaso, mas vê sempre frustrados os seus esforços. Treme. Rosto de perfil, ela escarnece com aristocrática crueldade: “Estás a desabotoá-los ou a cosê-los?”